A OCIDENTALIZAÇÃO DAS ARTES MARCIAIS CHINESAS
Um tema a muito complicado e com opiniões totalmente discrepantes dentro da comunidade de artes marciais chinesas como um todo é a influência ocidental e os rumos que a influenciam. De maneira geral alguns são totalmente contrários enquanto outros abraçam totalmente o conceito. Enquanto dizem que a influência denigre e distorce os conceitos do que é transmitido, outros alegam que a congruência de informações está presente no âmago do desenvolvimento através dos séculos. De maneira geral ninguém está totalmente certo ou errado, são apenas óticas diferenciadas. No entanto a influência ocidental é um fato já consumado e impossível de ser contornado, vamos entender a razão.
O contato da civilização chinesa com o ocidente pode ser traçado até o século 2 d.C., com a estrada da seda e o Império Romano. Embora tenha tido momentos de extremo isolacionismo, é possível afirmar que a diplomacia com estrangeiros tenha influenciado sociedades locais em menor ou maior grau. No entanto o nível de mudança e o quanto se estendeu é impossível afirmar, isso inclui as artes marciais. Vamos avançar alguns séculos para conhecer um dos primeiros casos de influência estrangeira na civilização chinesa, mais especificamente no século 15 e 16. Os famosos wokou, ou piratas japoneses, moldaram o formato de batalhas naval e por terra. Grandes generais modificaram e criaram novas táticas, formações e técnicas de batalha para se adequaram a esta ameaça. O mais interessante, no entanto, é que estes piratas não eram exclusivamente japoneses, ali estavam coreanos e também portugueses. É possível afirmar que a tecnologia e táticas navais e terrestres dos portugueses efetivamente influenciaram de maneira decisiva o wushu. Podemos verificar quais forma em manuais escritos no período com o objetivo de circular pelo território chinês.
Continuemos nosso avanço e vamos para o século 18 e 19, onde se formaram as artes marciais tradicionais que conhecemos. O contato inglês trouxe uma explosão de diferentes costumes e culturas para os chineses, penetrando em todos as ramificações da sociedade, da política até a tecnologia. O boxe inglês mais especificamente foi extensivamente demonstrado para chineses, isso inclui também metodologias de treino. Relatos ingleses apontam que a grande maioria dos artistas marciais possuíam um nível muito baixo de habilidade, sendo sucessivamente derrotados em partidas amistosas ou desafios gerais. É natural que tal façanha tenha se impregnado dentro do modelo de arte marcial, forçando os praticantes a melhora constante de suas habilidades. Não era incomum encontrar escolas de boxe na região, tanto que o exército Kuomitang utilizou esta arte marcial para treinar seus soldados como demonstrado no vídeo abaixo.
Neste vídeo é possível perceber que não só artes marciais estrangeiras possuíam grande influência na cultura local, como era considera em tal estima que foi adotada para treinar seus exércitos. Embora já tenha visto comentários sobre o treino ser de Wing Chun, registros da época e a própria movimentação técnica do vídeo demonstram que se trata da nobre arte do boxe. Muito provavelmente este tipo de influência foi sentido mais no âmbito da metodologia de combate e competição do que especificamente tecnicamente. Embora isso também possa ser discutido, pois ao mesmo tempo em que as técnicas tradicionais (básicos, rotinas e aplicações) não foram modificadas de maneira gritante para incluir conceitos estrangeiros, o combate demonstrava um certo nível de apropriação. Porém sem analisar estilo por estilo e família por família, fica muito difícil de saber o grau de influência foi obtido através dos anos.
O vídeo acima demonstra o nível de habilidade de professores famosos na época. Algumas coisas chamam a atenção nele, primeiro que foi realizado fora da China, na Malásia especificamente. A razão era a total proibição de combates para praticantes de wushu, seja de treinos ou campeonatos em Hong Kong. Meu Shifu sempre me fala que começou a praticar outras artes marciais, especificamente Judo, Karate e Taekwondo justamente para poder participar de campeonatos. Outro ponto é o ringue no qual estão realizando o evento, claramente montado para eventos de boxe. A área de competição tradicional chinesa é o Lei Tai, ou simplesmente plataforma elevada. O ringue com cordas montadas e nas proporções exatas demonstra um local constante para a prática de combates de boxe, o que provavelmente atraía a atenção chinesa para as artes marciais ocidentais. A última observação é justamente a total falta de costume de combate, algo que os primeiros torneios de Kuoshu já tinham evidenciado, porém ficou marcado para o mundo com este registro. Importante citar que este foi um marco importante nas artes marciais chinesas, pois observaram a necessidade de melhorarem a qualidade marcial de seus treinos.
Chegando finalmente na República Popular da China, talvez este seja o ápice da influência ocidental dentro das artes marciais chinesas. A criação do wushu de competição, com suas rotinas voltadas para apresentações plásticas e efetividade marcial nula, sofreu extrema influência da educação física e também de esportes semelhantes ocidentais como a ginástica olímpica. Embora continuasse a ser baseado em artes marciais tradicionais chinesas, os conceitos empregados para qualidade e dificuldade afim de diferenciar e promover os melhores atletas, é todo de esportes ocidentais. A própria motivação de se tornar um esporte olímpico demonstra que foi criada para evidenciar valores ocidentais, um demonstrativo esmagador da influência ocidental, porém neste caso, não de artes marciais, mas de esportes.
Sua contraparte combativa também não ficou para trás na modificação em prol da maior perpetuação de conceitos ocidentais. O Sanda, ou originalmente denominado Sanshou, nunca foi uma seleção das melhores técnicas do wushu tradicional, mas sim um amontoado de conceitos e didáticas de diferentes lugares do mundo. É preciso reforçar que o Sanda não foi criado como um esporte, isso foi uma adaptação posterior, mas sim uma metodologia para o exército chinês treinar seus soldados rapidamente e com maior eficácia, algo já mostrado diversas vezes desde a Dinastia Ming. Portanto buscaram diversas metodologias em artes marciais pelo para absorver dentro de seus conceitos e transferir para a metodologia chinesa. Portanto os métodos de pernas foram adaptados do Muay Thai e Taekwondo, arremessos e imobilização do Judo, Shuai Jiao e Qin Na, e a parte de mãos, ou socos, perceberam que o boxe possuía a mais rápida e eficiente maneira de treinar. Portanto aqui a influência ocidental não foi sentida apenas de maneira complementar ou simplesmente como um conceito difuso. O boxe inglês influenciou diretamente na formação da arte marcial chinesa do exército, e por consequência, em todas as outras tradicionais que utilizam conceitos do Sanda em suas práticas de combate.
Temos o dever de lembrar também que isso não foi e nunca será exclusividade das artes marciais chinesas. Todas os estilos marciais orientais sofreram em algum momento influência das ocidentais. O Judo per si é um exemplo, pois Kano em sua formulação, estudou e incorporou técnicas e metodologias de wrestling em sua arte. O Muay Thai é um outro exemplo bem característico, antes da escola Holandesa se firmar como tendo forte base no boxe, o mesmo já tinha influenciado a arte marcial tailandesa de modo que modificou todo o treinamento e aplicação de técnicas. Isso inclui também os modelos de competição, se aproximando do inglês e se afastando dos orientais. Poderia citar outras como o Karate e o Taekwondo, porém o foco do artigo é sobre as chinesas.
A influência final ocidental dentro das artes marciais chinesas não se dá por qualquer metodologia ou técnicas, mas sim dentro da própria cultura. A partir do momento que estrangeiros, especificamente ocidentais, começaram a praticar e também a ensinar o wushu, se iniciou um processo de ocidentalização das artes marciais chinesas. Mesmo que sigamos à risca os preceitos dos chineses, o fato de estarmos inseridos dentro de uma cultura totalmente diferente e com ideias diferenciadas, faz com que nossos pensamentos e concepções modifiquem em maior ou menor grau a tradição a nós incumbida. Os próprios chineses que possuem contato com a civilização ocidental acabam adquirindo essa carga cultural e por consequência, influenciando suas artes marciais de origem. Não importa se estão na China ou fizeram a ponte para outros países. Esta é uma evolução natural e constante, podendo acontecer em menor ou maior grau, dependendo da vontade e nível e consciência do professor e de seus praticantes.
Embora a ocidentalização das artes marciais chinesas seja um processo irreversível, ela não é necessariamente ruim ou prejudicial. É um acontecimento que já vem ocorrendo a séculos, sendo apenas acelerada e perceptível pelo fenômeno da globalização. Cabe aos praticantes e retentores do conhecimento perceber e limitar o nível de modificação perpetuada pela influência ocidental. O âmago do wushu deve permanecer fiel a suas origens não importando o quanto evolua, pois, a partir do momento que se perde, deixa de ser uma arte marcial chinesa e se torna alguma outra coisa. Nosso principal objetivo é entender o processo e perceber o nível que atinge para que possamos continuar a cadeia de conhecimentos e manter não a pureza, mas o valor do tesouro marcial chinês.
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